sexta-feira, 27 de março de 2009

Estigma por Zélia Melo

Os estigmas: a deterioração da identidade social
Zélia Maria de Melo
Profa. Adjunta da Universidade Católica de Pernambuco.
Mestre em Antropologia e Doutora
em Psicologia, Universidade de
Deusto, Bilbao - Espanha
Goffman (1993, p. 11) faz referência ao uso da palavra "estigma"pelos gregos,
definida como "signos corporales, sobre los cuales se intentaba exhibir algo
malo y poco habitual en el status moral de quien los presentaba".
O estigma era a marca de um corte ou uma queimadura no corpo e significava
algo de mal para a convivência social. Podia simbolizar a categoria de escravos
ou criminosos, um rito de desonra etc. Era uma advertência, um sinal para se
evitar contatos sociais, no contexto particular e, principalmente, nas relações
institucionais de caráter público, comprometendo relações comerciais.
Na época do cristianismo, as marcas corporais tinham um significado
metafórico; os sinais representavam a "graça divina", que se manifestava através
da pele. Eram também uma referência médica, representando perturbações físicas.
Na atualidade, a palavra "estigma"representa algo de mal, que deve ser
evitado, uma ameaça à sociedade, isto é, uma identidade deteriorada por uma
ação social. Para Goffman (1993, p. 11), "la sociedad establece los medios para
caracterizar a las personas y el complemento de atributos, que se perciben como
corrientes y naturales a los miembros de cada uma de esas categorías".
A sociedade estabelece um modelo de categorias e tenta catalogar as pessoas
conforme os atributos considerados comuns e naturais pelos membros dessa
categoria. Estabelece também as categorias a que as pessoas devem pertencer,
bem como os seus atributos, o que significa que a sociedade determina um padrão
externo ao indivíduo que permite prever a categoria e os atributos, a identidade
social e as relações com o meio. Criamos um modelo social do indivíduo e, no
processo das nossas vivências, nem sempre é imperceptível a imagem social do
indivíduo que criamos; essa imagem pode não corresponder à realidade, mas ao
que Goffman (op. cit.) denomina de uma identidade social virtual. Os atributos,
nomeados como identidade social real, são, de fato, o que pode demonstrar a
que categorias o indivíduo pertence.
Alguém que demonstra pertencer a uma categoria com atributos incomuns
ou diferentes é pouco aceito pelo grupo social, que não consegue lidar com o
diferente e, em situações extremas, o converte em uma pessoa má e perigosa,
que deixa de ser vista como pessoa na sua totalidade, na sua capacidade de
ação e transforma-se em um ser desprovido de potencialidades. Esse sujeito é
estigmatizado socialmente e anulado no contexto da produção técnica, científica
e humana.
Segundo Goffman, o estigma estabelece uma relação impessoal com o outro;
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o sujeito não surge como uma individualidade empírica, mas como representação
circunstancial de certas características típicas da classe do estigma, com
determinações e marcas internas que podem sinalizar um desvio, mas também
uma diferença de identidade social.
O estigma é um atributo que produz um amplo descrédito na vida do sujeito;
em situações extremas, é nomeado como "defeito", "falha"ou desvantagem em
relação ao outro; isso constitui uma discrepância entre a identidade social virtual
e a identidade real. Para os estigmatizados, a sociedade reduz as oportunidades,
esforços e movimentos, não atribui valor, impõe a perda da identidade social e
determina uma imagem deteriorada, de acordo com o modelo que convém à
sociedade. O social anula a individualidade e determina o modelo que interessa
para manter o padrão de poder, anulando todos os que rompem ou tentam
romper com esse modelo. O diferente passa a assumir a categoria de "nocivo",
"incapaz", fora do parâmetro que a sociedade toma como padrão. Ele fica à
margem e passa a ter que dar a resposta que a sociedade determina. O social
tenta conservar a imagem deteriorada com um esforço constante por manter a
eficácia do simbólico e ocultar o que interessa, que é a manutenção do sistema
de controle social.
Para Goffman (1993, p. 13), os atributos indesejados são considerados estigmas:
Aquellos que son incongruentes con nuestro estereotipo acerca de cómo debe
ser determinada especie de individuos. El término estigma será utilizado, pues,
para hacer referencia a un atributo profundamente desacreditador; pero lo que
en la realidad se necesita es un lenguaje de relaciones, no de atributos. Un
atributo que estigmatiza a un tipo de poseedor puede confirmar la normalidad
de otro y, por conseguinte, no es ni honroso ni ignominioso en sí mismo.
Retomando o conceito de individualidade virtual e identidade real do sujeito,
o autor sublinha que, quanto mais discrepante for a diferença entre as duas identidades,
mais acentuado o estigma; quanto mais visual, quanto mais acentuada e
recortada a diferença, mais estigmatizante; quanto mais visível a diferença entre
o real e os atributos determinantes do social, mais se acentua a problemática
do sujeito regido pela força do controle social. A discrepância entre as duas
identidades é prejudicial para a identidade social; o sujeito assume uma posição
isolada da sociedade ou de si mesmo e passa a ser uma pessoa desacreditada.
Em conseqüência, passa a não aceitar-se a si mesmo. O sujeito passa a ser o
diferente, dentro de uma sociedade que exige a semelhança e não reconhece, na
semelhança, as diferenças. Sem espaço, sem voz, sem papéis e sem função, não
pode ser nomeado e passa a ser um "ninguém", "um nada", nas relações com o
outro. Não pode ser o sujeito da ação.
Os estigmatizados assumem um papel fundamental na vida dos ditos normais,
pois colaboram estabelecendo uma referência entre os dois e demarcam
assim as diferenças no amplo contexto social. Segundo Goffman (1993, p. 56),
outra possibilidade de os estigmatizados demarcarem seu papel social é quando
sua diferença "no se revela de modo inmediato, y no se tiene un conocimiento
previo (o, por lo menos, él no sabe que los demás la conocen), es decir, cuando
no se trata en realidad de uma persona desacreditada, sino desacreditable".
O desacreditado não necessita manter somente o controle da tensão emocional
diante dos controles sociais, mas um bom controle da informação acerca
dos estigmas, como, por exemplo, dizer a verdade ou mentir a quem, como, onde
e quando queira, em determinada situação ou momento.
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O autor conceitua a informação social como uma representação social do
sujeito, com suas características mais ou menos permanentes, contrapostas aos
sentimentos, estados de ânimo e à intenção que o sujeito pode ter em dado momento.
São signos que o sujeito transmite para o outro através da expressão
corporal. O autor denominou "social"a tal informação, que pode ser de freqüência
acessível e recebida de forma rotineira. Segundo ele (1993, p. 58), "la
información social transmitida por cualquier símbolo particular puede confirmarnos
simplemente lo que otros signos nos dicen del individuo, completando
la imagen que tenemos de él de manera redundante y segura".
A informação social transmitida por um símbolo pode constituir um registro
especial de prestígio, honra ou posição social privilegiada. O símbolo de prestígio
pode contrapor-se aos símbolos de estigmas. Para Goffman (1993, p. 58),
Los símbolos de estigmas son aquellos signos especialmente efectivos para
llamar la atención sobre una degradante incongruencia de la identidad, y capaces
de quebrar lo que de otro modo, sería uma imagen totalmente coherente,
disminuyendo de tal suerte nuestra valorización del individuo.
A visibilidade do estigma constitui um fator decisivo e aqueles que convivem
com o indivíduo podem exercer influência na apreensão da sua identidade social.
Em um primeiro momento, é necessário diferenciar o que o autor denominou
visibilidade ou evidências do estigma e "conhecimento". Em um sujeito portador
de um estigma muito visível, o simples contato com o outro dará a conhecer o
estigma. O conhecimento que os outros têm do estigmatizado pode ser baseado
nos rumores ou nos contatos anteriores. Outro aspecto a determinar em uma
situação do sujeito portador de um estigma visível é até que ponto isso interfere
em suas interações com o meio social.
A identidade social estigmatizada destrói atributos e qualidades do sujeito,
exerce o poder de controle das suas ações e reforça a deterioração da sua identidade
social, enfatizando os desvios e ocultando o caráter ideológico dos estigmas.
A sociedade impõe a rejeição, leva à perda da confiança em si e reforça o caráter
simbólico da representação social segundo a qual os sujeitos são considerados
incapazes e prejudiciais à interação sadia na comunidade. Fortalece-se o imaginário
social da doença e do "irrecuperável", no intuito de manter a eficácia do
simbólico.
1 Estigmas: caminhos da exclusão social
A sociedade limita e delimita a capacidade de ação de um sujeito estigmatizado,
marca-o como desacreditado e determina os efeitos maléficos que pode
representar. Quanto mais visível for a marca, menos possibilidade tem o sujeito
de reverter, nas suas inter-relações, a imagem formada anteriormente pelo
padrão social.
A escola, muitas vezes percebida de forma positiva, pode parecer inacessível
àqueles que não podem participar dos logros construídos pela sociedade, pois
estão excluídos do processo de desenvolvimento humano.
Para Minuchin (1982), a família é uma unidade social que desenvolve múltiplos
papéis fundamentais para o crescimento psicológico do sujeito, marcando
as diferenças so-ciais e culturais, mas com raízes universais. A família é uma
organização de apoio, proteção, limites e socialização. Tem uma proposta e propriedades
de auto-perpetuação; uma vez favorecido um processo de mudança,
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a família o preservará, pois as experiências são qualificadas dentro dela e permanecem
na vida do grupo. A família convive com as mudanças de valores, de
padrões éticos, econômicos, políticos e ideológicos da sociedade.
A família transmite a tradição, que representa o cenário do imaginário cultural,
com os significados e significantes dos ritos e mitos do presente e do
passado, construindo sua história particular, marcando as relações internas e
externas, os vínculos afetivos e sociais, com a intenção de estruturar o universo
psicológico dos membros do grupo familiar. Através dos vínculos estabelecidos
na família, o sujeito estigmatizado pode encontrar o suporte para a apreensão
das suas diferenças, no contexto das semelhanças. Pode relativizar a diferença
e acrescentar pontos significativos na sua identidade social, algo diferente no
universo das semelhanças.
Quando os lugares e os papéis não são definidos nas relações sociais, as
histórias se mesclam e as funções são invertidas. Instaura-se a violência que,
vivida na sua história particular, perpassa as fronteiras e vai perpetuar-se na
história do sujeito, constituindo uma herança maldita de componentes destrutivos.
A ausência de vínculos inscreve a desordem, a ausência da autonomia e
da referência do ser individual no contexto do grupo social. A história pessoal
pode ser uma mera repetição da relação com o grupo. Buscam-se componentes
marcados pela impossibilidade de estabelecer vínculos com o grupo de referência;
instaura-se o registro da violência nas relações, estrutura-se o ciclo da
repetição dos componentes destrutivos, que atravessa os espaços, as fronteiras
do individual para o coletivo e, em decorrência, contribui para os desvios dos
sujeitos envolvidos na trama.
Cabe às instituições abrir espaço para a reflexão, propor novas direções e
contribuir para as transformações sociais.
2 Referências bibliográficas
GOFFMAN, Erving. Estigma: la identidad deteriorada. 5. ed. Buenos
Aires: Amorrortu Editores, 1993, 172p.
MINUCHIN, Salvador. Famílias, funcionamento e tratamento. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1982, 238p.
MINUCHIN, Salvador. La recuperación de la familia: relatos de esperanza
y renovación. Buenos Aires: Paidos, 1994, 307p.
MINUCHIN, Salvador. Calidoscopio familiar: imágens de violencia y curación.
Barcelona: Paidos, 1994, 217p.
MELO, Zélia Maria. Bandidos e mocinhos. Universidade Federal de Pernambuco,
1991. (Dissertação, Mestrado em Antropologia).
MELO, Zélia Maria. Violencia y familia: supervivencia en la casa y en la
calle. Espanha, Universidad de Deusto, Bilbao, 1999. (Tese, Doutorado em
Psicologia).
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